NA FLORESTA DO ALHEAMENTO
Fernando Pessoa
SEI QUE DESPERTEI e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver, diz-me que é muito cedo ainda. . . Sinto-me febril de longe. Peso-me não sei por quê...Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre um sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-me, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.
Um vento de sombras sopra cinzas de propósitos mortos sobre o que eu sou de desperto. Cai de um firmamento desconhecido um orvalho morno de tédio. Uma grande angústia inerte manuseia-me a alma por dentro, e incerta, altera-me como a brisa aos perfis das copas.
Na alcova mórbida e morna a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra. Sou todo confusão quieta. . . Para que há de um dia raiar?. . . Custa-me o saber que ele raiará, como se fosse um esforço meu que houvesse de o fazer aparecer.
Com uma lentidão confusa acalmo. Entorpeço-me. Bóio no ar, entre velar e dormir, e uma outra espécie de realidade surge, e eu em meio dela, não sei de que onde que não é esse...
Surge mas não apaga esta, esta alcova tépida, essa de uma floresta estranha. Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam.
Que nítida de outra e de ela essa trêmula paisagem transparente!. . .
E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia? Para que é que tenho um momento de mo perguntar?. . . Eu nem sei querê-lo saber. . .
A alcova vaga é um vidro escuro através do qual, consciente dele, vejo essa paisagem. . . e essa paisagem conheço-a há muito, e há muito que com essa mulher que desconheço erro, outra realidade, através da irrealidade dela. Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores, e aquelas flores e aquelas vias em desvios e aquele ser meu que ali vagueia, antigo e ostensivo ao meu olhar, que o saber que estou nesta alcova veste de penumbras de ver. . .
De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que sou atual destes vagos móveis e reposteiros e do seu torpor de noturna. Depois esse vento passa e torna a ser toda só-ela a paisagem daquele outro mundo...
Outras vezes este quarto estreito é apenas uma cinza de bruma, no horizonte d'essa terra diversa... E há momentos em que o chão que ali pisamos é esta alcova visível...
Sonho e perco-me, duplo de ser eu e essa mulher. . . Um grande cansaço é um fogo negro que me consome. . . Uma grande ânsia passiva é a vida que me estreita. . .
Ó felicidade baça... O eterno estar no bifurcar dos caminhos!. . . Eu sonho e por detrás da minha atenção sonha comigo alguém. . . E talvez eu não seja senão um sonho desse Alguém que não existe. . .
Lá fora a antemanhã tão longínqua! a floresta tão aqui ante outros olhos meus!
E eu, que longe desta paisagem quase a esqueço, é ao tê-la que tenho saudades d'ela, e é ao percorrê-la que a choro e a ela aspiro...
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Palavras de outrem sobre tempos de outrora, mas que nunca deixarão de ser tão minhas...
E é bom estar a contemplar as águas, as sombras, perceber e sentir que delas fomos familiares, e regozijar-se do tempo conjugado no passado.